O homem mais admirável da minha vida é um projeto de engenheiro, apaixonado por osteologia, artista e criou a única tatuagem que tenho, porque eu queria ter um desenho do meu irmão da maneira que ninguém tivesse.

Nossas conversas são os momentos nos quais eu me abasteço intelectualmente e espiritualmente, mas ele sempre encontra uma maneira de dizer: “é, mas eu não tenho diploma”. No que eu respondo debochadamente: “e eu tenho dois”.

Este homem nunca precisa recorrer ao ridículo argumento de autoridade para explicar nada. Porque ele faz uma coisa que o brasileiro médio, graças ao construtivismo, não sabe fazer: quando um assunto lhe interessa, ele investiga, estuda, analisa, aprende, usa ou simplesmente deixa para lá e se dedica a um novo tema.

Antes da escola moderna ele seria uma autoridade, porque o reconhecimento se dava pela experiência da realidade, aprendida por tradição, e não pelo relato de terceiros em livros corroborados por documentos emitidos por burocratas: os tão sonhados diplomas.

Nos últimos dias o argumento de autoridade tem-me incomodado significativamente. Começou com uma aluna na pós-graduação em que frequento: “você não entende, porque eu sou assistente social da prefeitura e sei que é assim que funciona”. Ela já havia repetido isto (só nesta aula) umas três vezes.

Eu me perguntei: “conto ou não que, diferente dela, eu já tenho mestrado e que, assim como ela, também estou no serviço público? Não…”. Deixei-a devanear em seu ridículo espetáculo, que me rendeu boas risadas.

Quando essas coisas acontecem em microuniversos percebemos menos os malefícios da escola moderna. Costumamos julgar como sendo só uma pessoa carente de atenção, ou alguém que ainda precisa aprender algo. Afinal, todos precisamos.

Quando a pessoa que usa o argumento de autoridade, no entanto, tem projeção nacional, devemos parafrasear Feuerbach e dizer que o nosso tempo prefere a representação à realidade. Eis a sociedade do espetáculo.

Há alguns dias tomei conhecimento de um texto publicado pelo médico e apresentador do Fantástico (é assim que o conheço) Drauzio Varella. No twitter, o escritor Francisco Razzo comentou:

“Gente do céu, fui ler o texto do Drauzio Varella sobre ideologia de gênero. Como alguém pode levar este senhor a sério? Basicamente ele diz o seguinte: se você discordar do que ele apresenta ali, você só pode ser um canalha, um fundamentalista medieval da pior espécie”. Obviamente fui ler o texto. Ora, Lewis me ensinou que eu deveria conhecer as coisas ruins para saber reconhecer as boas.

Em síntese, o texto é ofensivo, repugnante e raivoso. Não passa de um compilado de xingamentos aos conservadores que, verdadeiramente, se debruçam sobre as questões de gênero. Os discordantes da posição de Varella são chamados de “preconceituosos”, “vozes medievais”, “moralistas de botequim”, “boçais”, “demagogos” e “ignorantes”.

Com tamanha criatividade para agredir, se este texto tivesse sido escrito por uma mulher eu juraria que ela estava na TPM. Quanto desespero doutor!

As certezas nas características deflagradas pelo apresentador do Fantástico (nem sei se ele ainda é, não tenho TV em casa) são embasadas em dois argumentos. Primeiro, o tema discutido é nebuloso e as questões de gênero ainda estão incipientes mesmo entre aqueles que concordam com o médico.

Segundo, ele é médico e se ele acha é assim, então é assim e pronto. E se você discorda, você já foi “diagnosticado” com um dos adjetivos listados acima. Eis o argumento de autoridade na sua mais refinada forma.

A escola moderna é incapaz de produzir um Shakespeare, mas produz Drauzios Varellas em escala. Como um garoto do nono ano que foi “empurrado” para cumprir as estatísticas do governo, mas se acha mais inteligente que aluno do sexto ano que toca violoncelo. Ou a colega da pós-graduação se acha mais apta a discutir tolerância religiosa, que o meu irmão que já leu praticamente todos os documentos oficiais da religião muçulmana.

Ou, por fim, o apresentador de programa de televisão, que defende a teoria queer (e talvez nem saiba disso), mas do qual ninguém pode discordar porque ele tem um diploma. “…eu tenho dois”.